Publicação Contínua
Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
Versão impressa ISSN: 1519-3829

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Medo do parto: adaptação transcultural do Wijma Delivery Experience Questionnaire version B em português brasileiro e estudo transversal

Luna Lira Bergamini 1; Pedro Henrique do Nascimento Silva 2; Eduardo Pereira Barretto Filho 3; Auxiliadora Damianne Pereira Vieira da Costa 4; Valfrido Leão de Melo Neto 5

DOI: 10.1590/1806-9304202400000226 e20230226

RESUMO

OBJETIVOS: o presente estudo objetiva realizar uma adaptação transcultural do Wijma Delivery Expectancy/ Experience Questionnaire versão B (WDEQ-B) para o português brasileiro e aplicá-lo numa amostra de puérperas brasileiras, avaliando a prevalência do medo do parto e possíveis fatores associados.
MÉTODOS: realizou-se um estudo transversal envolvendo um processo de tradução e retrotradução do instrumento seguido de uma fase de pré-teste.
RESULTADOS: foi realizada uma adaptação transcultural do WDEQ-B, com correspondência razoável com o instrumento original e amplamente compreensível pelas mulheres brasileiras. Foram incluídas 57 puérperas, em três maternidades públicas, encontrando-se uma prevalência de 10,6%. Além disso, analisando-se a relação entre medo do parto e discordância entre preferência de via de parto e parto atual, foi encontrada uma razão de prevalência de 10,8 (IC95%= 1,3 – 87,7, p=0,026).
CONCLUSÃO: o WDEQ-B foi adaptado com sucesso para o português brasileiro e se mostrou um instrumento de pesquisa linguisticamente e culturalmente compreensível para analisar o medo do parto. Além disso, o estudo mostrou que discordância entre preferência de via de parto e parto atual parece estar associada à maior ocorrência de medo severo do parto.

Palavras-chave: Medo, Parto, Questionário, Adaptação transcultural, Puérperas

ABSTRACT

OBJECTIVES: the present study aims to carry out a cross-cultural adaptation of the Wijma Delivery Expectancy/ Experience Questionnaire Version B (WDEQ-B) into Brazilian Portuguese and apply it to a sample of Brazilian postpartum women, evaluating the prevalence of Fear of Childbirth (FoC) and possible associated factors.
METHODS: we conducted a cross-sectional study encompassing a process of translation and back-translation of the instrument followed by a pretesting phase.
RESULTS: we performed a cross-cultural adaptation of the WDEQ-B, with reasonable match from the original instrument and broadly comprehensible by our sample. 57 postpartum women were included, at three public maternity hospitals, finding a severe FoC prevalence of 10.6%. In addition, analyzing FoC and disruption between desired and actual delivery, a prevalence ratio of 10.8 (CI95%=1.3-87.7, p=0.026), was found.
CONCLUSION: the WDEQ-B was successfully adapted to the Brazilian Portuguese and showed to be a linguistic and culturally comprehensible research tool to analyze FoC among postpartum women in our population. Moreover, the study showed that disruption between desired and actual delivery mode might be associated with FoC occurrence.

Keywords: Fear, Childbirth, Questionnaire, Cross-cultural adaptation, Postpartum women

Introdução

O medo do parto é uma condição clínica muito importante, que afeta cerca de 14% das mulheres grávidas em todo o mundo e apresenta uma tendência crescente nos últimos anos.1 O Medo Severo de Parto ou tocofobia é definido como um medo irracional do momento do parto e está relacionado a várias consequências negativas para a mulher, o bebê e a família. Vários estudos encontraram uma associação entre essa condição e o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), a depressão pós-parto, os transtornos de ansiedade e o vínculo materno filial deficiente, portanto, seu diagnóstico precoce e a intervenção adequada são essenciais para o cuidado da saúde mental materna.2,3,4 Atualmente, o Wijma Delivery Expectancy/Experience Questionnaire (WDEQ) é a ferramenta mais validada e reconhecida para a avaliação do medo do parto.5

O WDEQ foi desenvolvido em 1998,5 após dez anos de estudo, com a intenção de medir um construto de medo relacionado ao parto, tanto durante a gravidez quanto após o parto. A avaliação psicométrica foi concebida por sua aplicação em 196 gestantes, entre outros oito instrumentos, alcançando um α de Cronbach ≥ 0,87. O questionário contém 33 perguntas que investigam sentimentos e pensamentos que podem ocorrer com relação ao parto. As perguntas são respondidas em uma escala Likert que varia de zero (extremamente) a cinco (nem um pouco). O escore final varia de zero a 165 e é determinado pela soma de todas as respostas, no entanto, os itens que correspondem a sentimentos positivos (2, 3, 6, 7, 8, 11, 12, 15, 19, 20, 24, 25, 27, 31) devem ser invertidos para o cálculo.5 O WDEQ demonstrou ser um instrumento confiável, concreto e compreensível, sendo traduzido e validado em vários idiomas, como japonês,6 Malaui,7 turco,8 alemão,9 espanhol10 e hindi,11 para citar alguns.

Desde a criação da escala, vários pontos de corte foram sugeridos, sendo que atualmente o mais aceito é 85, o que implica a presença de medo severo do parto e recomenda uma investigação mais ampla dessas mulheres. O estabelecimento desse ponto de corte específico foi proposto por um estudo observacional longitudinal com 106 mulheres, com o objetivo de encontrar o escore de corte ideal, referindo-se aos critérios de fobia específica do DSM-5 como padrão ouro. Após a aplicação de questionários psicométricos que investigaram a depressão, a ansiedade e o medo do parto, antes e depois do momento do parto, eles apresentaram o ponto de corte 85 com alta sensibilidade (100%) e especificidade (93,8%) para a detecção de medo do parto clinicamente relevante.3

É importante ressaltar que tem havido um número crescente de publicações sobre esse assunto nas últimas décadas, principalmente após o ano 2000, chegando a um aumento de quase 30 vezes no volume, o que também se correlaciona com a época da criação do WDEQ (1998). No entanto, de acordo com uma análise bibliométrica,12 quase todos esses trabalhos científicos foram realizados em países europeus e, paradoxalmente, os países com maiores taxas de natalidade ainda não alcançaram um número significativo de estudos nesse campo. O número de publicações sobre medo do parto no Brasil em 2020 corresponde a apenas 4% das publicações mundiais sobre o tema. Além disso, o Brasil é o segundo país do mundo com a maior taxa de cesáreas (57%), e vários estudos têm indicado que o medo do parto contribui para muitos desses procedimentos.13,14,15

O processo de adaptação transcultural tem como objetivo alcançar a equivalência entre a versão original e a versão de destino de um questionário, levando em conta não apenas o idioma, mas também os aspectos culturais. Esse processo dá origem a um instrumento mais confiável, considerando que está sendo construído para ser usado especificamente em um determinado contexto cultural, além de reduzir a parcialidade e aumentar a viabilidade do estudo.16

O presente estudo tem como objetivo realizar a adaptação transcultural do WDEQ-B para o português brasileiro e aplicá-lo em uma amostra de mulheres brasileiras no pós-parto, avaliando a prevalência e os possíveis fatores associados.

Métodos

Este estudo foi realizado em Maceió, capital do estado de Alagoas, localizado na região nordeste do Brasil, em três unidades de saúde: uma maternidade de alto risco obstétrico e dois serviços de baixo risco obstétrico.

Primeiramente, nosso grupo de pesquisa entrou em contato com o autor do instrumento original pedindo permissão para a tradução do questionário, recebemos sua resposta positiva e algumas orientações para o procedimento. O processo de adaptação transcultural ocorreu em cinco etapas, seguindo as Guidelines for the Process of Cross-Cultural Adaptation of Self-Report Measures (Diretrizes para o processo de adaptação transcultural de medidas de autorrelato),16 que compreendem: tradução, síntese, retrotradução, revisão pelo comitê de especialistas e pré-teste.

O primeiro passo foi a tradução da escala original para o português brasileiro por dois tradutores independentes, L.L.B., que tem conhecimento prévio sobre medo do parto, e A.D.P.V.C., sem conhecimento clínico prévio sobre esse assunto. Assim, foram geradas duas versões, T1 e T2, conforme descrito na segunda coluna da Tabela 1.
 


Na segunda etapa, as duas traduções foram mescladas em uma única versão, denominada T12, e as discrepâncias de idioma foram resolvidas após a análise de dois revisores independentes. Em seguida, foi realizada a terceira etapa, a retrotradução, e dois alunos de medicina, P.H.N.S. e E.P.B.F., retrotraduziram a versão T12 para o português do Brasil, gerando as versões BT1 e BT2, conforme observado na quarta coluna da Tabela 1. Os dois alunos que participaram dessa etapa são pesquisadores do programa institucional de bolsas de iniciação científica da Universidade Federal de Alagoas e têm conhecimento da língua inglesa. A quarta etapa foi a revisão pelo comitê de especialistas, quando todos os pesquisadores se debruçaram sobre os documentos produzidos para chegar a um consenso sobre os desvios e construir uma versão final da versão em português do Brasil do WDEQ-B. Nessa etapa, V.L.M.N. e M.L.M. foram convidados a compor o comitê de especialistas, pois ambos têm experiência anterior no processo de adaptação transcultural de instrumentos de pesquisa, bem como domínio dos idiomas português e inglês. A versão final formada após o comitê é apresentada na última coluna da Tabela 1.

A quinta e última etapa consistiu na aplicação experimental do instrumento em 57 puérperas, entrevistadas nas primeiras 72 horas pós-parto durante o período de hospitalização. De acordo com a diretriz utilizada, essa etapa do processo deve incluir pelo menos 30 a 40 indivíduos, avaliando diferentes níveis educacionais e uma certa heterogeneidade da amostra. Também foram aplicados dois outros questionários, um questionário com informações obstétricas e clínicas básicas e a versão brasileira da Escala de Suporte Social do Medical Outcomes Study (MOS-SSS).17

O MOS-SSS foi criado em 1991, por meio de entrevistas com 2987 pacientes com doenças crônicas, desenvolvendo um questionário objetivo, de fácil compreensão e autoaplicável, que avalia a percepção individual de apoio social.17 O questionário foi validado por sua aplicação em 4.030 funcionários inseridos no estudo Pró Saúde, no Brasil, apresentando altos níveis de consistência interna (α de Chronbach ≥0,83) e moderada correlação item-escala.18 O questionário é formado por 19 perguntas, respondidas em uma escala Likert de cinco itens: nunca, quase nunca, às vezes, quase sempre e sempre. A escala brasileira validada abrange três dimensões: interação social positiva/apoio afetivo (sete itens); apoio emocional/informacional (oito itens); e apoio material (quatro itens). A pontuação total é obtida pela soma de todos os itens; quanto maior a pontuação, maior a percepção de apoio social. Em geral, os resultados são interpretados distribuindo-se a amostra em quartis e usando-se o 25º quartil como ponto de corte. O mesmo processo é realizado com cada dimensão, permitindo uma análise detalhada da falta de apoio percebido.18

Os dados coletados foram inseridos em uma planilha do Excel. Anteriormente, os dados foram examinados descritivamente por meio do programa STATA versão 16.0, utilizando o formato de média e desvio padrão. Os testes T foram realizados, mostrando uma amostra normal de acordo com a análise de Shapiro-Wilk, com um p<0,001. A amostra foi categorizada em dois grupos principais, com e sem medo severo do parto, de acordo com o ponto de corte de pontuação do WDEQ de 85. As pontuações do MOS-SSS foram somadas e, em seguida, dicotomizadas, usando o primeiro quartil da distribuição como ponto de corte.18

Os dois grupos foram então comparados em relação às variáveis: baixo apoio social percebido, idade, nível educacional, estado civil, renda, origem (capital ou interior), risco obstétrico, paridade, modo de parto desejado e modo de parto real. A definição de alto ou baixo risco obstétrico foi realizada de acordo com o Manual de Gravidez de Alto Risco do Ministério da Saúde do Brasil.19 A comparação entre os grupos foi avaliada por meio de análises de qui-quadrado. As associações entre a presença de medo severo do parto e as variáveis categóricas foram avaliadas por análises de regressão de Poisson, que geraram razões de prevalência, com um intervalo de confiança de 95%.

Essa pesquisa foi submetida e aprovada pelo comitê local de ética e pesquisa da Universidade Federal de Alagoas (número de protocolo 58827122.4.1001.5013).

Resultados

Primeiramente, duas versões em português do Brasil foram mantidas por dois tradutores independentes, conforme descrito na Tabela 1, e a construção do T12 foi realizada. As respostas às perguntas são dadas em uma escala Likert de 1 a 6 e, no final dos dois extremos, um determinado sentimento ou pensamento pode ser categorizado como algo entre “extremely” e “not at all”. Na construção da versão T12, optou-se por traduzir essas expressões como “extremamente” e “nem um pouco”. A tradução literal para o português de “nem um pouco” seria o substantivo “nada”, mas essa expressão não é comumente usada no português brasileiro junto com adjetivos, por isso optamos por uma expressão mais informal e culturalmente usada.

A tradução foi semelhante na maioria dos termos, exceto nos itens 6, 13, 16, 21 e 26 (Tabela 1). No item 6, “afraid” foi traduzido como “assustadora” ou “apavorada”. Durante a discussão, foi analisada a raiz da palavra “apavorada”, “pavor” significa grande medo com espanto ou susto; enquanto a palavra “assustadora” significa simplesmente: que causa medo. Portanto, chegamos ao consenso de que o termo “assustadora” trazia a melhor interpretação do que as mulheres poderiam sentir durante o parto. No item 13, houve concordância de que ambos os termos “contente” e “satisfeita” eram substitutos plausíveis para “glad”; no entanto, “satisfeita” implica um sentimento mais amplo em relação à experiência do parto e, portanto, foi mantida. No item 16, a palavra “composed” foi traduzida como “calma e serena” e “comportada”, interpretou-se que a real intenção da autora era expressar serenidade no parto, e a palavra “serena” foi escolhida. No item 21, a expressão “longing for the child” foi particularmente desafiadora, tendo sido interpretada como dois sentimentos diferentes: “Saudade extrema do filho (medo de perder) o filho” e “ansiosa pela criança”. A expressão “To long for something” envolve um grande desejo ou necessidade de algo; é complexo fazer essa tradução para o português brasileiro, pois não temos uma expressão semelhante que possa ser aplicada no contexto do parto. Por fim, decidiu-se sustentar “extremo anseio de ter a criança”, com o objetivo de expressar a grande vontade da mãe de dar à luz seu bebê. O item 26 também causou perplexidade devido à maneira incomum como foi escrito em inglês: “I dared to totally surrender control to my body”. As duas traduções foram: “Eu duvidei a ponto de entregar todo o controle do meu corpo”; e “Deixei que o meu corpo tomasse o controle”. Nossa intenção era tornar o questionário mais compreensível para qualquer nível educacional, portanto, simplificamos a expressão como “Desisti totalmente de controlar meu corpo”.

Após a construção da versão T12, a retrotradução foi realizada por P.H.N.S. e E.P.B.F., e o comitê de especialistas foi realizado. O comitê foi formado por três pesquisadores experientes em saúde mental materna, que realizaram vários estudos sobre os efeitos da saúde mental materna precária, e todos os outros pesquisadores envolvidos no processo. Na maioria dos itens, a retrotradução alcançou as palavras do autor original.

Pré-teste

A versão final da escala, apresentada na última coluna da Tabela 1, foi então aplicada em 57 participantes, por meio de entrevistas orais, em suas primeiras 72 horas pós-parto. Os autores L.L.B., P.H.N.S. e E.P.B.F. abordaram as participantes durante o período de hospitalização e preencheram o questionário por meio de um formulário on-line. Após cada entrevista, foi perguntado às participantes se todas as palavras eram compreensíveis e se elas tinham dificuldade para entender as perguntas. O tempo necessário para preencher todo o questionário variou de oito a 15 minutos.

Todos os dados descritivos obtidos são apresentados na Tabela 2. Uma amostra de 57 mulheres com diferentes níveis educacionais foi incluída neste estudo: 12 com ensino fundamental incompleto, oito com ensino fundamental completo, 11 com ensino médio incompleto, 24 com ensino médio completo e duas com ensino superior. A idade das participantes variou de 16 a 39 anos, com uma média de 25,9 (DP=5,8). A prevalência do estado civil foi de 66,7% (n=38) mulheres com união estável ou casadas e 33,3% (n=19) solteiras. Houve uma prevalência de 35,1% de primíparas (n=20), e 33,3% foram configuradas como de alto risco obstétrico (n=19).
 


O escore médio do W-DEQ B foi de 51 (DP=24,1), variando de 9 a 111. A prevalência de medo severo do parto foi de 10,2% (n=6), o que corresponde a um escore do W-DEQ B superior ou igual a 85. A porcentagem de parto vaginal e cesariana foi de 52,6% (n=30) e 47,3% (n=27), respectivamente, e ambos os grupos tiveram uma distribuição igual para o medo severo do parto (três indivíduos em cada grupo). O modo de parto preferido foi 45,61% (n=26) para cesariana e 54,39% (n=31) para parto vaginal. No entanto, houve uma discrepância entre o modo de parto desejado e o parto real em 18 (31,6%) das participantes. Dessas, dez mulheres desejavam um parto vaginal, mas foram submetidas a uma cesariana e oito mulheres preferiam uma cesariana, mas tiveram um parto vaginal.

Realizamos o teste de regressão de Poisson para avaliar as possíveis associações entre o medo severo do parto e outras variáveis, conforme descrito na Tabela 3. O medo severo do parto e o tipo de parto foram analisados, encontrando-se uma razão de prevalência de 1,1, enquanto houve uma distribuição igual de cesariana e parto vaginal entre o grupo com medo severo do parto (três indivíduos cada). Ao examinar a relação entre o medo severo do parto e a preferência pela cesariana, a razão de prevalência encontrada também foi de 1,1, pois três mulheres com medo do parto preferiram o parto vaginal e três preferiram a cesariana. Não obstante, ao avaliar a relação entre o medo severo do parto e a discordância entre o modo de parto preferido e o parto atual, encontramos uma associação positiva estatisticamente significativa.
 


A percepção de baixo apoio social não foi significativamente associada ao medo severo do parto. Analisando cada dimensão do apoio social separadamente, encontramos uma associação positiva e estatisticamente significativa com a dimensão interação social positiva/apoio afetivo.

Todas as 6 participantes com medo severo do parto tinham menos de 35 anos de idade e tinham ensino médio incompleto ou grau de escolaridade mais elevado.

Discussão

O medo do parto é um campo de pesquisa em ascensão que requer maior investigação em países emergentes, especialmente no Brasil, onde não existe um instrumento de pesquisa validado internacionalmente. As taxas de parto vaginal e cesárea encontradas neste estudo coincidem com os números encontrados no nordeste do Brasil, o que representa uma amostra apropriada para testar esse instrumento de pesquisa.20 Verificamos também que as mulheres brasileiras têm uma percepção diferente do nascimento em relação ao modo de parto, uma vez que a preferência pelo parto vaginal ou pela cesariana foi de quase 50%, com uma leve tendência para o parto vaginal (54,9%).

O único estudo brasileiro, até o momento, que investigou o medo do parto usando o WDEQ foi realizado analisando 67 gestantes que compareceram ao pré-natal em Santos, São Paulo. O questionário aplicado foi o “Questionário sobre o Medo Percebido do Parto (QMPP)”, uma versão em português europeu do WDEQ-A, validado para aplicação em mulheres portuguesas. A prevalência de medo severo do parto foi de 31,4%, considerando um escore igual ou superior a 85. Eles também encontraram escores mais altos em mulheres mais velhas: a média de idade do grupo com medo severo do parto foi de 30 anos, enquanto a do grupo sem medo severo do parto foi de 25 anos, mas não houve diferença estatística entre os grupos. Além disso, foi encontrada uma relação positiva entre o medo severo do parto e o estado civil de casada ou união estável, com um p=0,017. O estudo foi pioneiro nesse assunto no Brasil, no entanto, o instrumento de pesquisa utilizado não foi criado ou adaptado para aplicação em ambientes brasileiros e, portanto, os resultados devem ser interpretados com cautela.21

A taxa de medo do parto pós-parto encontrada neste estudo, 10,5%, está de acordo com a média global de 14% (3,4-43%).1 A prevalência mundial de medo do parto foi estimada por meio de uma meta-análise realizada em 2017, com a inclusão de 29 estudos, dos quais 19 utilizaram o W-DEQ como principal ferramenta de pesquisa. No entanto, foi observada uma heterogeneidade significativa (I2 = 99,25%) e todos os estudos foram realizados durante o período pré-natal, contabilizando 853.988 gestantes. Até o momento, não há nenhuma meta-análise que se concentre exclusivamente no medo do parto após o parto.

Os achados de nosso estudo sugerem que as mulheres que apresentam uma discordância entre a preferência do modo de parto e o modo de parto real tendem a ter medo severo do parto. Isso também foi sugerido por outro trabalho, com a análise da experiência de parto de 496 primíparas suecas.22 O objetivo do estudo foi investigar as diferenças entre a experiência do parto em mulheres que tiveram uma cesariana eletiva e outros tipos de parto, usando o WDEQ-A no período pré-natal e o WDEQ-B, aplicado três meses após o parto. De acordo com o estudo, houve mais experiências negativas de parto entre as mulheres que planejaram um parto natural, mas tiveram uma cesariana de emergência ou um parto vaginal assistido, em comparação com as que tiveram cesariana eletiva ou parto vaginal espontâneo (p<0,001 nos testes ANOVA comparando os grupos). No presente estudo, foi observada uma associação com medo severo do parto em mulheres que não conseguiram o modo de parto desejado. Assim, as mulheres que tiveram experiências frustradas de parto podem ter um risco maior de desenvolver medo severo do parto e devem ter maior apoio emocional e psicológico pós-natal.

Um estudo conduzido por Mortazavi e Mehrabadi,23 avaliou 662 puérperas iranianas, encontrando uma taxa de medo severo do parto de 21,1%, usando também um ponto de corte W-DEQ B de 85. Da mesma forma, eles revelaram que as mulheres com níveis educacionais mais baixos tinham níveis mais altos de medo do parto, o que difere do nosso estudo, no qual as seis mulheres com medo severo do parto tinham pelo menos o ensino médio completo. Com relação à idade, as mulheres com menos de 30 anos apresentaram níveis mais altos de medo severo do parto (ORajust=0,048, p=1,428), o que foi semelhante ao nosso estudo, no qual todas as mulheres com medo severo do parto tinham menos de 35 anos. Os autores também examinaram as variáveis relativas ao apoio das mulheres, constatando que o baixo nível de satisfação com o relacionamento conjugal/sexual (OR=2,066, p=0,018) e o baixo nível de satisfação com a gravidez (OR=9,0, p<0,001) previam o medo severo do parto; no entanto, diferentemente do presente estudo, não havia um questionário validado para examinar essas variáveis.23

Nosso estudo utilizou um questionário validado para avaliar a percepção do apoio social em puérperas, em uma definição mais ampla, e demonstrou que ele pode ser um fator de risco para o desenvolvimento do medo do parto, embora não tenhamos encontrado significância estatística em nossa análise. Ao analisar as dimensões do apoio social, verificou-se que a dimensão com maior correlação com o desenvolvimento de medo severo do parto foi a dimensão interação social positiva/apoio afetivo, atingindo um valor de p compatível com a significância estatística. Esse achado era previsível, pois vários estudos mostram que as pessoas que participam de atividades sociais tendem a ser menos vulneráveis ao isolamento, ao estresse e às condições de saúde.17 Portanto, o apoio social parece desempenhar um papel importante na saúde mental das mulheres e no desenvolvimento do medo do parto, sendo um aspecto crucial a ser mais investigado e avaliado na população brasileira.

O estudo conseguiu desenvolver uma versão em português brasileiro de um importante instrumento de pesquisa, amplamente utilizado na avaliação de medo do parto. O período de pré-teste demonstrou boa compreensibilidade, mostrando ser um instrumento linguística e culturalmente adequado. É importante observar que nossa amostra foi composta por usuários do Sistema Único de Saúde, que geralmente têm nível de escolaridade e renda mais baixos, o que sugere ser compreensível em todos os ambientes. Além disso, os resultados de nosso pré-teste mostram que as mulheres brasileiras tendem a ter taxas mais altas de medo do parto quando inseridas em níveis educacionais mais altos e com idade inferior a 35 anos, uma vez que toda a amostra com medo severo do parto tinha essas características, embora não pudemos apontar possíveis causas para esses achados. Além disso, a discordância entre o modo de parto preferido e o parto atual foi positivamente associada ao medo severo do parto, sugerindo que essa população poderia estar em maior risco de vivenciar uma experiência de parto mais negativa. Esses achados destacam a importância de mais estudos brasileiros sobre medo do parto, com amostras mais amplas, para apontar as diferenças culturais envolvidas nas particularidades de nossa população. Além disso, são necessários mais estudos que apliquem nosso instrumento de pesquisa adaptado para realizar avaliações psicométricas e validação do questionário.

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Contribuição dos autores

Bergamini LL: conceptualization (Lead), Data curation (Equal), Investigation (Equal), Methodology (Equal), Project administration (Equal), Validation (Equal), Writing - original draft (Lead), Writing - review & editing (Equal).

Nascimento Silva PH, Barretto Filho EP: conceptualization (Equal), Data curation (Equal), Investigation (Equal), Methodology (Equal), Visualization (Equal), Writing - review & editing (Equal).

Costa ADPV: Methodology (Equal), Project administration (Equal), Software (Equal), Supervision(Equal), Visualization (Equal), Writing - review & editing (Equal).

Melo Neto VL: conceptualization (Equal), Methodology (Equal), Project administration (Equal), Supervision (Equal), Validation (Equal), Visualization (Equal), Writing - review & editing (Equal).

Medeiros ML: conceptualization (Equal), Investigation (Equal), Methodology (Equal), Project administration (Lead), Supervision (Lead), Validation (Equal), Visualization (Equal), Writing - review & editing (Equal).

Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesses.

Recebido em 20 de Agosto de 2023
Versão final apresentada em 7 de Setembro de 2024
Aprovado em 9 de Setembro de 2024

Editora Associada: Leila Katz

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