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Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
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Mortalidade materna no Brasil: análise espaço-temporal entre 2000 e 2019

Ranna Carinny Gonçalves Ferreira 1; Sarah Cavalcanti Guedes 2; Rafael da Silveira Moreira 3

DOI: 10.1590/1806-9304202400000231 e20230231

RESUMO

OBJETIVOS: analisar a distribuição espaço-temporal da mortalidade materna no Brasil nos anos de 2000 a 2019.
MÉTODOS: estudo ecológico, longitudinal, de análise espaço-temporal dos óbitos maternos no Brasil, de 2000 a 2019, utilizando como unidade espacial as 450 regiões de saúde com dados disponíveis no Datasus. As análises foram feitas com o software Satscan v9.7, considerando o modelo de probabilidade discreto de Poisson.
RESULTADOS: foram identificados cinco clusters de alta mortalidade materna, predominantemente nas regiões Norte e Centro-Oeste, além do estado do Rio de Janeiro e partes do Nordeste. Cinco clusters de baixo risco foram identificados, principalmente na costa nordestina e em estados do Sul e Sudeste. A análise temporal revelou um cluster de baixo risco de 2000 a 2007 (RR=0.92; p<0.001), indicando avanços significativos na saúde materna durante esse período.
CONCLUSÕES: a região Norte do país apresentou altos valores de RMM, concentrando clusters de alto risco na análise espaço-temporal, com altas RMM entre 2000 e 2009, mostrando uma correlação da mortalidade materna com o perfil de desigualdades socioeconômicas do país.

Palavras-chave: Mortalidade materna, Análise espaço-temporal, Estratégias de saúde globais

ABSTRACT

OBJECTIVES: to analyze the spatio-temporal distribution of maternal mortality in Brazil from 2000 to 2019.
METHODS: an ecological, longitudinal study of space-time analysis of maternal deaths in Brazil from 2000 to 2019, using the 450 health regions as the spatial unit. Data available from Datasus were used. Analyses were conducted using Satscan v9.7 software, considering the discrete Poisson probability model.
RESULTS: five clusters of high maternal mortality were identified, predominantly in the North and Midwest regions, as well as in the state of Rio de Janeiro and parts of the Northeast. Five low-risk clusters were identified, mainly along the northeastern coast and in states in the South and Southeast. Temporal analysis revealed a low-risk cluster from 2000 to 2007 (RR=0.92; p<0.001), indicating significant advances in maternal health during this period.
CONCLUSIONS: the North region of the country showed high MMR values, concentrating high-risk clusters in the spatiotemporal analysis, with high MMR between 2000 and 2009, showing a correlation of maternal mortality with the country's socioeconomic inequalities.

Keywords: Maternal mortality, Spatio-temporal analysis, Global health strategies

Introdução

A mortalidade materna é um desafio persistente e crucial para a saúde pública no Brasil. Este país enfrenta complexas dinâmicas que afetam a saúde das mulheres durante a gravidez, o parto e o pós-parto. Apesar dos avanços significativos em cuidados médicos e de saúde nas últimas décadas, a mortalidade materna continua sendo uma preocupação central.1

A 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) define morte materna como a “morte de uma mulher durante a gestação ou até 42 dias após o término dela, independentemente da duração ou da localização da gravidez, devida a qualquer causa relacionada com ou agravada pela gravidez ou por medidas em relação a ela, porém não devida a causas acidentais ou incidentais”.2 O principal indicador epidemiológico utilizado para mensurar esse dado é a Razão de Mortalidade Materna (RMM), que captura o risco de morte em uma única gravidez ou em um único nascimento.3

A compreensão dos fatores que contribuem para esse problema, bem como a identificação de soluções eficazes, são necessários para garantir a saúde e o bem-estar das mães brasileiras. Para tal, diversas estratégias foram adotadas para aprimorar o registro de óbitos no Brasil, incluindo a criação de Comissões de Investigação da Mortalidade Perinatal e Materna nas secretarias estaduais e municipais de saúde pelo Ministério da Saúde (MS) a partir de 1994. Essas medidas visavam a inclusão de informações relacionadas à gravidez, aborto, parto ou puerpério na declaração de óbito nacional e no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), bem como a notificação obrigatória da morte materna dentro de 24 horas após o falecimento. Esses esforços, empreendidos pelo MS do Brasil com colaboração de Comissões Nacionais, secretarias estaduais de saúde e Comitês Estaduais e Municipais de Investigação do Óbito Materno, têm sido eficazes na redução da mortalidade materna nos últimos anos. No entanto, a pandemia de COVID-19, que começou em 2020, teve e continua a ter um impacto significativo nesse indicador de mortalidade.4,5

Um estudo, que utilizou dados do SIM, analisou as mortes maternas no período de março de 2020 a maio de 2021 por meio de modelos aditivos generalizados. Os resultados revelaram um aumento significativo de 70% nas mortes, independentemente da região do país. Nas regiões norte, nordeste e sul, esse aumento foi observado em todas as faixas etárias, caracterizando-se como um fenômeno consistentemente elevado.6 Outros estudos apontam que a cada dez óbitos maternos por COVID-19 registrados no mundo, oito ocorreram no Brasil4. Eventos de grande magnitude, como a pandemia da Covid-19, destacam as vulnerabilidades dos sistemas de saúde e potencializam as lacunas de acesso aos serviços, resultando em um aumento da RMM.7,8

A emergência dessa nova ameaça à saúde materna ressalta a necessidade premente de uma análise contínua dos fatores subjacentes à mortalidade materna. Esses fatores abrangem uma série de variáveis, incluindo idade materna avançada, níveis mais baixos de escolaridade, ocupação, frequência reduzida de consultas pré-natais, entre outros determinantes críticos.9,10 A busca por soluções eficazes para mitigar esses óbitos representa um imperativo nos países em desenvolvimento. Muitos estudos têm se limitado a comparações percentuais, deixando de utilizar o indicador mais apropriado: a RMM.

Além disso, a análise da distribuição espaço-temporal da mortalidade materna no Brasil permanece sub explorada, apesar de seu potencial em esclarecer os determinantes das variações regionais nesses eventos. Devido à diversidade regional do país, a utilização de regiões de saúde é essencial para compreender a mortalidade materna, permitindo identificar padrões e desafios específicos em diferentes áreas, direcionar políticas públicas de forma mais eficaz, avaliar intervenções específicas e mobilizar ações locais para melhorar o atendimento materno. Nesse sentido, o objetivo do estudo foi analisar as diferenças regionais na distribuição de óbitos maternos no Brasil, por meio da análise espaço-temporal da RMM, entre os anos 2000 e 2019.

Métodos

O principal indicador epidemiológico utilizado para mensurar esse dado é a RMM, definida como o número de mortes maternas em uma população dividido pelo número de nascidos vivos, expresso por 100.000 em determinado tempo e espaço.11

Foi realizado um estudo epidemiológico, longitudinal, do tipo ecológico, com análise de agrupamentos espaciais e temporais, utilizando dados secundários, disponibilizados pelo SIM e pelo Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), ambos acessados através da plataforma de informações do Ministério da Saúde: Datasus tabnet. Um estudo ecológico focaliza na análise comparativa entre grupos, ao invés de indivíduos. Devido a isso, há uma carência de informações detalhadas ao nível individual sobre a distribuição conjunta das variáveis dentro desses grupos. As variáveis em estudos ecológicos geralmente incluem medidas agregadas, como dados ambientais, ou medidas mais abrangentes e globais.12 Os dados foram acessados no ícone “estatística vitais” e selecionada a opção “Mortalidade - 1996 a 2019, pela CID-10” e “Nascidos vivos - 1994 a 2019”. Os dados referentes à morte materna foram coletados no tópico “Óbitos de mulheres em idade fértil e óbitos maternos”.

As unidades espaciais de análise selecionadas foram as Regiões de Saúde (REGS). O decreto nº 7508, de 28 de julho de 2011, que dispõe sobre a organização do Sistema Único de Saúde (SUS), define região de saúde como o “espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde”.13 Foram coletadas, então, as coordenadas correspondentes aos centroides de cada REGS na forma de medidas decimais de latitude e longitude a partir do site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, resultando em 450 REGS em todo território nacional, distribuídas em 46 no Norte, 133 no Nordeste, 38 na região Centro-oeste, 165 na região Sudeste e 68 no Sul.

As unidades mínimas de análise deste estudo foram as REGS. Essas regiões foram escolhidas devido à sua relevância para a análise da mortalidade materna, uma vez que refletem a organização do sistema de saúde e a distribuição geográfica dos serviços médicos e podem variar significativamente em tamanho e complexidade.

O cálculo da RMM específica utiliza como numerador o número de óbitos maternos por local de residência e como denominador o número de nascidos vivos também por local de residência da mãe, gerando uma razão de óbitos por 100 mil nascidos vivos, por ano, por região de saúde.

Realizou-se uma análise abrangente da mortalidade materna no Brasil utilizando a técnica de varredura espacial, temporal e espaço-temporal. Utilizou-se o programa SaTScan v9.720 para identificar clusters de regiões de saúde com razão de mortalidade materna acima ou abaixo do esperado. Esses clusters primários, na qual a mortalidade materna tinha a menor probabilidade de ser aleatória, foram identificados e avaliados com base em valores de probabilidade. Além disso, foram identificados clusters secundários em análises espaciais e espaço-temporais. Utilizamos o “risco relativo” (RR) para avaliar a suscetibilidade de diferentes áreas à mortalidade materna.14

Valores acima de 1 indicam clusters em que existe uma razão de mortalidade acima do esperado (adotado como cluster de risco), ao passo que valores abaixo de 1 indicam clusters nos quais as razões de mortalidade observadas são menores do que as esperadas (adotadas como clusters de proteção). Para avaliação da significância ao nível de p<0,05 do modelo, foi utilizada a simulação de Monte Carlo. Além das análises espaciais e espaço-temporais, foram realizadas análises puramente temporais, com precisão anual, buscando identificar tendências temporais significativas, também adotando-se p<0,05.14

Resultados

Na Tabela 1, pode-se observar a distribuição do número absoluto de óbitos, a porcentagem e a RMM nas regiões do Brasil. Nota-se que a região Norte possui uma RMM média de 107,06 óbitos/100mil NV, a mais alta entre as cinco regiões.
 


A análise puramente espacial realizada posteriormente com ajuste da janela circular para 10% encontrou dez clusters com significância estatística (p<0,05), sendo cinco clusters com RMM maior do que a esperada (alto risco) e cinco clusters com RMM menor do que a esperada (baixo risco), sendo representados nos mapas da Figura 1. O primeiro cluster de alto risco, nomeado cluster A, engloba todo o estado do Maranhão e Piauí, nordeste do Tocantins e oeste do Ceará; foi encontrada uma relação óbitos encontrados/esperados de 1,47 e Risco Relativo (RR) de 1,54, com p<0,001. O segundo cluster de alto risco (B) engloba grande parte do Rio de Janeiro e sudeste de Minas Gerais; com relação de óbitos encontrados/esperados de 1,31 e RR de 1,35, com p<0,001. O terceiro cluster de alto risco (C) engloba boa parte do estado da Bahia e Sergipe e Nordeste de Minas Gerais; sendo encontrada relação óbitos encontrados/esperados de 1,19 e RR de 1,22, com p<0,001. O quarto cluster de alto risco (D) engloba o Amazonas, Amapá, Roraima e noroeste do Pará; com razão óbitos encontrados/esperados de 1,25 e RR de 1,26, com p<0,001. O quinto cluster de alto risco (E) inclui todo o estado do Mato Grosso do Sul e sul do Mato Grosso, com razão óbitos encontrados/esperados de 1,21 e RR de 1,21, com p<0,001.
 


Os clusters de baixo risco encontrados foram: o primeiro (F) situando-se no Nordeste do estado de São Paulo e sul de Minas Gerais, englobando a capital São Paulo, os municípios de Campinas e Ribeirão Preto; foi encontrada uma relação óbitos encontrados/esperados de 0,65 e RR de 0,62, com p<0,001. O segundo cluster (G), com menor abrangência geográfica, também se situa no estado de Minas Gerais, mais na região central englobando a capital Belo Horizonte e municípios vizinhos; nesse local a relação dos óbitos encontrados/esperados foi de 0,66 e RR de 0,65, com p<0,001. O terceiro cluster (H) situa-se no Sul do país, abrangendo o estado de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e sul do Paraná, incluindo a capital Curitiba; a relação óbitos encontrados/esperados foi de 0,76 e RR de 0,74, com p<0,001. O quarto cluster de baixo risco (I) abrangeu uma área bem pequena de São Paulo, mais especificamente no município de São Bernardo do Campo, com relação óbitos encontrados/esperados de 0,81 e RR de 0,8, com p<0,001. E por fim, o quinto cluster de baixo risco (J) situa-se no Nordeste do Brasil, próximo ao litoral, abrangendo a parte leste de Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte, onde situam-se as capitais e seus municípios arredores; foi encontrado RR de 0,89 e relação óbitos encontrados/esperados de 0,9, com p<0,001 (Tabela 2).
 


A análise puramente temporal (Figura 1) encontrou apenas um cluster com significância estatística, situado no período entre 2000 e 2007, com RMM média de 53,5 óbitos/100 mil nascidos vivos, relação casos encontrados/esperados de 0,95 e RR de 0,92, com p<0,001. A análise espaço-temporal encontrou sete clusters (Tabela 3), todos com significância estatística e p<0,001, sendo seis clusters de alto risco e apenas um de baixo risco, representados nos mapas das Figura 1. Os clusters de alto risco encontrados foram os seguintes: o primeiro cluster (cluster 1) abarca os estados do Maranhão, Piauí e Ceará, abrangendo o período de 2000 a 2009, apresentou relação número de casos encontrados/esperados de 8,77 e RR de 9,4, com p<0,001. O segundo cluster (2) inclui o estado do Rio de Janeiro, sudeste de Minas Gerais e nordeste de São Paulo, compreendendo o período de 2000 a 2009, com relação óbitos observados/esperados de 7,42 e RR de 7,84, com p<0,001. O terceiro cluster (3) abarca o norte do estado de Minas Gerais, parte do Espírito Santo e Bahia, também situado no período de 2000 a 2009, com razão de óbitos encontrados/esperados de 6,95 e RR de 7,35, com p<0,001. O quarto cluster (4) integra os estados do Paraná, parte de Santa Catarina e norte do Rio Grande do Sul, com período situado entre 2000 e 2006, relação de casos observados/esperados de 10,53 e RR de 10,91, com p<0,001. O quinto cluster (5) engloba o estado do Amazonas, Rondônia, parte do Amapá, Pará e Mato Grosso, no período de 2000 a 2009, com relação casos observados/encontrados de 6,38 e RR de 6,66, com p<0,001. O sexto cluster (6) encontrado possui uma abrangência geográfica bem menor, situado em São Paulo, no município de São Bernardo do Campo, cujo período foi de 2000 a 2009, com relação casos encontrados/esperados de 4,84 e RR de 5,0, com p<0,001. O único cluster de baixo risco (7) encontrado na análise espaço-temporal situa-se no nordeste de São Paulo, englobando a capital e os municípios de Campinas e Ribeirão Preto, no período de 2013 a 2019, com relação casos observados/esperados de 0,31 e RR de 0,30, com p<0,001.
 


A Figura 1 destaca na primeira imagem os clusters de alto risco, ou seja, os locais onde a RMM calculada foi maior do que a esperada. Apesar da semelhança de distribuição desses clusters, não há perfeita sobreposição quando se compara a localização dos aglomerados. Essa diferença (Figura 1) é mais evidente na região Sul, que na análise puramente espacial apresenta clusters de baixo risco e na análise espaço-temporal concentra clusters de alto risco. A região Norte do país apresentou altos valores de RMM e concentrou clusters de alto risco tanto na análise espacial quanto na análise espaço-temporal, com altas RMM entre 2000 e 2009. A região Centro-Oeste concentrou clusters de alto risco para mortalidade materna nos anos de 2000 a 2019 em nosso estudo. Na Figura 2, apresenta-se uma análise minuciosa do período de 2000 a 2019, focada na mortalidade materna no Brasil. Observa-se que, entre os anos de 2000 e 2007, houve uma redução notável no risco relativo de mortalidade materna (risco relativo <1), sugerindo uma fase de proteção e avanços significativos na saúde materna durante este intervalo.
 


Discussão

A mortalidade materna é um indicador crucial da qualidade da saúde reprodutiva de um país e um importante reflexo das desigualdades sociais e econômicas. No Brasil, a análise espaço temporal da mortalidade materna entre 2000 e 2019 revela tanto progressos quanto desafios persistentes. Entre 2000 e 2019, o Brasil experimentou uma redução na RMM. No entanto, essa diminuição não foi uniforme em todo o país. Regiões mais desenvolvidas, como o Sudeste e o Sul, apresentaram RMM mais baixas, enquanto regiões menos desenvolvidas, como o Norte e o Nordeste, continuaram a enfrentar desafios significativos. As regiões Nordeste e Sudeste são responsáveis pelas maiores porcentagens dos óbitos maternos ocorridos no Brasil, apesar disso, a região com a maior RMM no período é a região Norte. A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica as regiões de acordo com os valores de RMM em “recomendada”, “baixa”, “moderada”, “alta” e “extremamente alta”. Nenhuma das regiões do Brasil apresentou RMM na faixa recomendada pela OMS durante esse período, ou seja, entre 20 e 35 óbitos/100 mil nascidos vivos. Apesar disso, todas as regiões mantiveram-se na classificação “baixa”, que compreende RMM entre 20 e 99; exceto a região Norte do país, cuja RMM situa-se na faixa “moderada”3.

Essa diminuição da RMM no país pode estar atrelada aos avanços na saúde materna durante esse período, sendo esse progresso atribuído a várias políticas e programas de saúde pública. O Programa de Humanização do Pré-Natal e Nascimento (PHPN), por exemplo, enfatizou a importância do cuidado pré-natal de qualidade e contribuiu para uma redução nas mortes maternas relacionadas à gravidez de alto risco.16 Motta et al.17 demonstraram que a disseminação dos Comitês de Mortalidade Materna, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) e a Rede Cegonha influenciaram na redução das RMM no Brasil no início da década, principalmente entre as mulheres de 30 a 49 anos, com redução menos expressiva entre mulheres mais jovens.17 Além disso, a expansão do acesso aos serviços de saúde, como o SUS, desempenhou um papel fundamental na melhoria dos indicadores de saúde materna.

No entanto, persistem desafios significativos na redução da mortalidade materna no Brasil. Primeiramente, as disparidades regionais continuam a ser um problema crítico. Regiões mais pobres e remotas ainda enfrentam dificuldades no acesso a serviços de saúde de qualidade e na capacitação de profissionais de saúde, o que contribui para razão de mortalidade materna mais elevadas.18 A exemplo desse desafio, consiste a vinculação de gestantes a uma maternidade, que é algo regulamentado por lei desde 2005, porém o cumprimento dessa legislação não está ao alcance de toda mulher brasileira, principalmente em regiões mais pobres, como Norte e Nordeste.19

Uma limitação significativa deste estudo refere-se à qualidade e abrangência dos registros de óbitos no Brasil. Embora o SIM tenha sido estabelecido em 1976 e alcançado uma cobertura de 82% até 1999, persistem desafios relacionados às variações regionais na cobertura desse sistema. A introdução do termo “garbage code” (código de lixo) na literatura nacional reflete as preocupações com a má classificação de mortes, especialmente na esfera da mortalidade materna, obscurecendo a clareza e precisão dos dados20. Ainda que seja relevante destacar os avanços recentes, como a instauração das Comissões de Investigação da Mortalidade Perinatal e Materna, as disparidades e imprecisões persistem, especialmente em nível regional.

A ocorrência de um óbito materno é profundamente trágica e exige investigações meticulosas. Erros como os códigos garbage e outros problemas associados ao subdiagnóstico e sub-registro podem conduzir à subnotificação, resultando em uma representação distorcida da real magnitude dos desafios da saúde materna.21 Reconhecer e abordar essas limitações é fundamental para a formulação de estratégias preventivas eficientes.

A escassez de estudos sobre os determinantes da mortalidade materna na região Norte do país, que concentra as maiores RMM e em taxas ainda muito superiores às preconizadas pela OMS, demonstra a importância de aprofundar a investigação sobre o tema. Inúmeros estudos mostraram a correlação espacial entre a mortalidade materna, o Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) e a desigualdade de renda.22 A região Norte do país apresentava, entre os anos de 2000 a 2010, IVS na escala de muito alto e alto. A partir de 2011 até 2013 a vulnerabilidade iniciou um processo de queda, estabilizando-se em “média”.23

O achado de clusters de alto risco para mortalidade materna na região Norte do Brasil pode estar intrinsecamente ligado às adversidades relacionadas à distribuição de renda e à precariedade da infraestrutura naquela localidade, quando comparada a outras regiões do país. Ademais, as características geográficas peculiares da região Norte impõem desafios adicionais ao acesso aos serviços de saúde, entre outros fatores que contribuem para essa problemática. Isso porque as disparidades socioeconômicas desempenham um papel preponderante tanto na qualidade quanto no acesso aos serviços de saúde, e isso se torna ainda mais evidente quando analisamos a saúde materna. Mulheres que fazem parte de estratos socioeconômicos mais fragilizados frequentemente se deparam com obstáculos significativos para acessar serviços médicos de qualidade durante o período gestacional e o parto. É alarmante observar que a RMM é consideravelmente mais alta entre mulheres negras e indígenas se comparadas às mulheres brancas. Importante ressaltar que essa discrepância não se deve unicamente às questões socioeconômicas, mas também está fortemente atrelada aos desafios perpetuados pelo racismo estrutural que está arraigado no sistema de saúde.5,24

Outro ponto importante a ser considerado é a distribuição de raça/cor no Brasil. Conforme revelado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2022, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população autodeclarada preta ou parda é predominante nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, correspondendo a 78,4% e 73,9% respectivamente. Em comparação, a região Sul tem 26,3% de sua população identificada dessa forma, enquanto no Sudeste é 49,9% e no Centro-Oeste é 62,6%. Além disso, é importante destacar que a região Norte abriga 44,48% da população indígena do Brasil.25 Estados como Mato Grosso e Maranhão também têm uma concentração significativa de indígenas.25 Esta distribuição demográfica, com a predominância de grupos historicamente mais vulneráveis nas regiões Norte e Nordeste, pode ser um dos fatores que explicam as discrepâncias na RMM entre as diferentes regiões do país.

Albuquerque et al.26 caracterizaram as regiões de saúde do Brasil segundo uma tipologia que levava em consideração nível de desenvolvimento socioeconômico e oferta e complexidade de serviços de saúde. A região Centro-Oeste apresentou níveis médios e altos de desenvolvimento econômico, mas apesar disso mantiveram uma baixa oferta e complexidade de serviços de saúde locais. As regiões Sul e Sudeste apresentaram no mesmo estudo maior concentração de áreas de alto desenvolvimento socioeconômico e média a alta concentrações de serviços de saúde locais, sendo também condizentes com nossos achados, pois tais regiões, principalmente o estado de São Paulo, concentraram os clusters de mais baixo risco de morte materna no país.26

Para superar esses desafios, o Brasil precisa continuar investindo em políticas de saúde materna que atendam às necessidades das populações mais vulneráveis. Isso inclui melhorar o acesso a serviços de saúde de qualidade, capacitar profissionais de saúde e promover a educação sexual e reprodutiva.17 Além disso, a luta contra o racismo e a discriminação no sistema de saúde é fundamental para reduzir as desigualdades na mortalidade materna.

A despeito da relevância do tópico, é notável a carência de estudos abrangentes sobre a mortalidade materna que possibilitem comparações entre diferentes regiões do Brasil. Em 2011, um estudo conduzido por Morse et al.27 lançou luz sobre essa lacuna ao realizar uma revisão da literatura científica voltada à mortalidade materna no país ao longo das últimas três décadas. Os resultados revelaram que a maioria dos artigos publicados sobre o tema concentrava-se de maneira significativa na região Sudeste do Brasil, com uma predominância de abordagens descritivas.27 Essa predominância na produção científica limitada a uma única região, sobretudo de caráter meramente descritivo, não reflete a complexidade e a diversidade do panorama da mortalidade materna em todo o país. É particularmente preocupante a falta de estudos que se aprofundem na análise da RMM na região Norte do Brasil, uma vez que apresenta este indicador com valores consistentemente superiores às médias nacionais.28 Essa carência de investigações que se dediquem a compreender as particularidades e os desafios enfrentados na região Norte sublinha a necessidade premente de se promover discussões mais abrangentes e detalhadas sobre essa temática crítica.

O terceiro Objetivo de Desenvolvimento Sustentável, Saúde e Bem-estar, preconiza a redução da mortalidade materna nos países onde as altas taxas de óbitos relacionados ao parto e puerpério ainda representam um grave problema de saúde pública. O Brasil é um desses países onde a mortalidade materna prevalece inaceitavelmente alta, a despeito de suas causas serem em grande parte evitáveis se detectadas precocemente e tratadas de forma adequada. Este artigo visou contribuir com a literatura disponível sobre o tema através de uma análise espaço-temporal da distribuição desses óbitos no país nos últimos 20 anos, utilizando dados públicos e de fácil acesso. Encontramos uma distribuição de aglomerados (clusters) de alto risco para mortalidade materna com predomínio na região Norte, parte do Nordeste e Centro-Oeste e clusters de baixo risco na região Sul, Sudeste e litoral nordestino. Tal distribuição é condizente com as desigualdades regionais peculiares ao país, na distribuição de renda e acesso aos serviços de saúde. Encontramos ainda um aglomerado temporal com RMM abaixo da esperada nos primeiros anos do período analisado (2000 a 2007), podendo refletir os impactos de políticas públicas instauradas no começo do século. É importante destacar que estudos analisando a mortalidade materna no Brasil são e serão ainda mais essenciais nos próximos anos, principalmente considerando os impactos da pandemia de Covid-19 na mortalidade materna.

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Contribuição dos autores

Ferreira RCG, Guedes SC, Moreira RS: concepção e delineamento do estudo, coleta e análise dos dados, interpretação dos resultados, redação e revisão do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.

Recebido em 20 de July de 2023
Versão final apresentada em 20 de August de 2024
Aprovado em 21 de August de 2024

Editora Associada: Melânia Amorim

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