RESUMO
OBJETIVOS: avaliar a qualidade de vida e a relação existente entre o sono de pais e principais cuidadores de crianças menores de dois anos.
MÉTODOS: estudo transversal realizado com pais, mães ou cuidadores de lactentes de um a 23 meses de vida, com aplicação online dos questionários Pittsburgh Sleep Quality Index, para avaliação da qualidade do sono, e WHOQOL-BREF, para qualidade de vida.
RESULTADOS: a maior parte dos 456 respondedores eram mães (97,4%) e principais cuidadores da criança (97,6%). Dentre os participantes, 76,5% referiram ter uma qualidade de vida boa ou muito boa, o que não teve impacto com a idade da criança. A grande maioria (83,4%) dos respondedores teve uma pontuação no PSQI >5, indicando qualidade do sono ruim. A qualidade do sono teve correlação negativa e significativa com a maioria dos domínios do WHOQOL-BREF.
CONCLUSÕES: mães de crianças com menos de dois anos apresentam baixa qualidade do sono, o que impacta negativamente em sua qualidade de vida. Profissionais da saúde devem ficar especialmente atentos à saúde física e mental dos cuidadores de crianças pequenas, e as políticas públicas relacionadas aos direitos de licença maternidade e paternidade e direitos trabalhistas devem levar tais resultados em consideração.
Palavras-chave:
Qualidade do sono, Qualidade de vida, Saúde materna
ABSTRACT
OBJECTIVES: this study aimed to assess the quality of life and the relationship between the sleep of parents and primary caregivers of children under two years old.
METHODS: a cross-sectional study was conducted with parents, mothers, or caregivers of infants aged one to 23 months, using online administration of the Pittsburgh Sleep Quality Index (PSQI) to assess sleep quality and the WHOQOL-BREF to assess quality of life.
RESULTS: the vast majority of the 456 respondents were mothers (97.6%)and primary caregivers of the child (97.6%). Among the participants, 76.5% reported having a good or very good quality of life, which was not influenced by the age of the child. The vast majority (83.4%) of respondents had a PSQI score above 5, indicating poor sleep quality. Sleep quality showed a significant negative correlation with most domains of the WHOQOL-BREF.
CONCLUSIONS: mothers of children under two years old experience poor sleep quality, which negatively impacts their quality of life. Healthcare professionals should pay special attention to the physical and mental health of caregivers of young children, and public policies related to parental leave rights and labor rights should take such results into account.
Keywords:
Sleep quality, Quality of life; Maternal health
IntroduçãoO sono é parte crucial do mecanismo de restauração e reparação do equilíbrio corporal e da preservação da saúde psicológica. À medida que o ser humano cresce e se desenvolve, as características do sono adequado modificam-se, variando em relação à duração, distribuição de estágios e ritmo circadiano.
1 Nesse contexto, a quantidade de horas dormidas na vida adulta é menor e depende do ciclo do sono, o qual está relacionado com a idade e fatores externos. Portanto, o sono pode ser um desafio para pais de crianças pequenas, uma vez que a criação de um filho pode se comportar como um fator externo prejudicial, afetando a saúde e o bem-estar a partir de alterações fisiológicas, como cansaço, falhas de memória, absenteísmo ao trabalho e adormecimento ao volante.
1Existem estudos que objetivam avaliar a qualidade de sono em pais de crianças com quadros específicos, como na vigência de uma doença,
2 na prematuridade,
3,4 ou no baixo peso ao nascer.
5 Sabe-se que dormir é essencial para manter o adequado funcionamento fisiológico do corpo e que a privação dessa função orgânica, como ocorre em pais de bebês com problemas comportamentais de sono, por exemplo, está associada à depressão, fadiga e problemas cognitivos.
6 Ainda, o aumento de fatores estressores para os cuidadores nos primeiros anos de vida da criança, como a internação do recém-nascido, contribui para maiores índices de transtornos psicológicos, como a ansiedade, e maior probabilidade de desenvolver depressão pós-parto.
7Entretanto, é importante avaliar se o nascimento de uma criança saudável é capaz de impactar na qualidade de vida e no sono das famílias, uma vez que os estudos existentes buscam detectar o impacto da saúde dos filhos na vida dos pais apenas em situações específicas em que há algum prejuízo na saúde da criança.
2-5 Apesar disso, a literatura ainda é escassa quanto a pesquisas que avaliam, especialmente, a relação entre a qualidade de vida e de sono em cuidadores de crianças, mesmo que saudáveis.
A literatura traz a relação direta entre a qualidade ruim de sono materno e a presença de indicadores negativos de saúde física e mental,
5 o que justifica a imprescindibilidade de pesquisas mais aprofundadas. Ademais, um estudo aponta que o bem-estar da criança, geralmente priorizado pelos pais, faz com que estes experimentem falta de sono e, consequentemente, de energia para se envolver em atividades e eventos sociais, impactando na sua forma de vida.
2 Também, a qualidade de sono materno foi descrita como preditor significativo para o estresse, fadiga e alterações do humor.
6 Assim, entender o impacto da criação dos filhos na qualidade de vida dos pais é essencial para pensar de forma multidimensional em saúde.
Objetiva-se com o presente estudo avaliar a qualidade de vida e a possível relação existente entre o sono de pais e principais cuidadores de crianças menores de dois anos.
MétodosEstudo transversal conduzido através da aplicação de um questionário on-line com pais de lactentes com idade entre um e 23 meses de vida. A pesquisa foi conduzida na Universidade Federal de Juiz de Fora, mas foi divulgada através das redes sociais por meio de um perfil criado para tal fim, permitindo a participação de famílias brasileiras. A coleta de dados se deu entre 1º de setembro e 31 de outubro de 2023.
O critério de inclusão foi ser pai, mãe ou principal cuidador de um lactente de até dois anos de vida. O tamanho da amostra foi calculado considerando um intervalo de confiança de 95%, com erro de amostragem de 5%, e um adicional de 10% de participantes para compensação de possíveis perdas amostrais. Utilizou-se como base uma população estimada de nascidos vivos brasileiros dos últimos dois anos anteriores ao estudo (2.677.101 nascidos vivos em 2021 e 2.561.922 nascidos vivos em 2022, de acordo com dados do Ministério da Saúde).
8 Isso resultou em tamanho amostral de 423 participantes.
Foram excluídos participantes que não completaram o preenchimento da ferramenta de coleta de dados dentro do prazo da pesquisa e aqueles oriundos de outros países de língua portuguesa que eventualmente realizaram o preenchimento dos instrumentos.
Os dados sociodemográficos coletados foram idade do cuidador, sexo, idade do lactente, escolaridade, renda em salários-mínimos (à época da pesquisa, o salário-mínimo nacional era de R$1320,00) e exercício de trabalho remunerado pelo cuidador.
Para avaliação da qualidade de vida, foi utilizado o WHOQOL-BREF, um instrumento autoaplicável composto de 26 questões que produz um perfil de qualidade de vida em quatro domínios, validado no Brasil por Fleck
et al.
9 Nessa validação, a consistência interna dos domínios pelo coeficiente de fidedignidade de Cronbach variou de 0,69 a 0,84 entre os domínios, e foi de 0,91 para o questionário completo; os coeficientes de teste e reteste variaram entre 0,69 e 0,81 (
p<0,0001).
9 Os domínios que compõem a escala são: saúde física (pontuação de 7 a 35 pontos), que avalia questões como dor, desconforto, fadiga e uso de medicamentos; psicológica (de 6 a 30 pontos), que avalia sentimentos positivos, autoestima, memória, espiritualidade; relações sociais (de 3 a 15 pontos), que pergunta sobre relacionamentos, apoio social e atividade sexual; e ambiente (de 8 a 40 pontos), que avalia questões como segurança, recursos financeiros, ambiente no lar, lazer e transporte.
Para avaliação da qualidade do sono, foi utilizado o Pittsburgh Sleep Quality Index (PSQI), uma ferramenta autoaplicável, validada no Brasil, em população adulta, por Bertolazi
et al.
10 A consistência interna da versão brasileira pelo coeficiente de fidedignidade de Cronbach é de 0,73, e o coeficiente de teste e reteste foi de 0,82.
10 O PSQI é composto de 24 questões que avaliam sete componentes do sono: qualidade subjetiva; latência do sono (calculada a partir de perguntas que avaliam o tempo gasto para adormecer); duração do sono; eficiência habitual (calculada a partir do número de horas dormindo e do número de horas passadas na cama); presença de transtornos do sono; uso de medicamentos para dormir e disfunção diurna. A soma das pontuações dos sete componentes resulta em um escore total, para quais pontuações acima de 5 indicam qualidade do sono ruim.
11Os dados obtidos pelo questionário on-line foram extraídos para o programa Microsoft Excel e o programa
Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 22.0, utilizado para as análises estatísticas. A análise descritiva foi realizada com cálculo de média, desvio padrão, frequência absoluta e relativa.
A relação entre o resultado das escalas WHOQOL-BREF e PSQI entre si e com as variáveis sociodemográficas foi verificada por aplicação da correlação de Pearson e pelo teste
t para amostras independentes (no caso de normalidade dos dados) ou pelo teste U de Mann-Whitney (na ausência de normalidade dos dados), considerando o nível de significância estatística de 5% para todos os testes. O teste de Shapiro-Wilk foi utilizado para avaliar a normalidade dos dados. Para interpretação da magnitude dos coeficientes na correlação de Pearson, foi utilizada a referência de Cohen (1988), segundo a qual coeficientes variando de 0,10 a 0,29 indicam correlação fraca; escores entre 0,30 e 0,49 sugerem correlação moderada; e valores entre 0,50 e 1,00 são interpretados como correlação forte.
12A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora, sob CAAE número 69944923.3.0000.5147, número do parecer 6.259.629, em 24 de agosto de 2023.
ResultadosUm total de 456 respondedores completaram a pesquisa, com predomínio de participantes do sexo feminino (96,3%) e que se identificaram como mães (97,4%) de uma criança menor de dois anos de vida. A grande maioria (97,6%) dos respondedores era o cuidador principal da criança. A idade dos participantes variou de 16 a 50 anos, com média de 31,6 anos (desvio padrão: 6,02). A idade dos filhos dos respondedores variou de um a 23 meses de vida, com 43,1% de bebês entre um e seis meses; 24,4% entre sete e doze meses; e 32,5% entre 13 e 23 meses de vida. Predominaram participantes oriundos da região sudeste do Brasil (67,1%), mas com representação de todas as regiões geográficas. Os dados sociodemográficos dos participantes da pesquisa estão detalhados na Tabela 1.
Na avaliação autorreferida da qualidade de vida, 76,5% dos participantes referiram ter uma qualidade de vida boa ou muito boa, enquanto apenas 6,8% referiram uma qualidade de vida ruim ou muito ruim. No questionamento sobre a satisfação com a própria saúde, 51,1% revelaram estarem satisfeitos ou muito satisfeitos, enquanto 26,5% estavam insatisfeitos ou muito insatisfeitos com sua saúde.
As pontuações médias para os quatro domínios do questionário WHOQOL-BREF (saúde física, psicológica, relações sociais e ambiente) foram comparadas em relação a variáveis sociodemográficas (idade do participante, idade de seu filho, escolaridade e renda), e esses resultados são apresentados na Tabela 2.
Observa-se que a idade da criança não se correlacionou com nenhum dos domínios da qualidade de vida. A idade do respondedor se correlacionou de forma fraca com o domínio ambiente (
p<0,01). Já a escolaridade e a renda apresentaram correlação fraca, porém estatisticamente significativa (
p<0,01), com os domínios de saúde física e psicológica. Para o domínio ambiente, houve correlação moderada com a escolaridade e forte com a renda (
p<0,01 para ambas). Não houve correlação entre escolaridade e renda com o domínio de relações sociais. (Tabela 2).
Ao serem questionados como classificavam a qualidade de seu sono no último mês, 65,1% dos participantes responderam que tinham uma qualidade ruim ou muito ruim. A grande maioria (83,4%) dos respondedores tiveram uma pontuação no PSQI acima de 5, que indica qualidade do sono ruim. A pontuação no PSQI apresentou correlação positiva fraca, porém estatisticamente significativa, com a escolaridade dos participantes, e negativa fraca com a renda. Não houve correlação com a idade do respondedor e com a idade da criança (Tabela 2).
As pontuações nos sete componentes do PSQI tiveram correlações negativas e estatisticamente significativas com a maioria dos domínios do WHOQOL-BREF, conforme detalhado na Tabela 3. A pontuação no escore global do PSQI teve correlação negativa e estatisticamente significativa com todos os domínios do WHOQOL-BREF (Tabela 3). Essa correlação foi forte para o domínio de saúde física (r = -0,548), e moderada para os domínios psicológico (r = -0,368), relações sociais (r = -0,362) e ambiente (r = -0,316).
Nos motivos apontados referentes à dificuldade para dormir no questionário PSQI, 77,5% dos respondedores que indicaram “outras razões” além daquelas enumeradas no questionário, evidenciaram um motivo relacionado ao bebê, como acordar para amamentar ou prestar outro cuidado (dados não tabelados).
O teste de Shapiro-Wilk foi utilizado para avaliar a normalidade dos dados das variáveis que representam os quatro domínios do WHOQOL-BREF e os sete componentes do PSQI, bem como o escore final do PSQI, todos com
p<0,01), evidenciando uma distribuição assimétrica dos dados (dados não tabelados).
As médias das pontuações dos quatro domínios do WHOQOL-BREF foram superiores entre respondedores que exerciam trabalho remunerado, de forma estatisticamente significativa, indicando que o trabalho foi protetor em relação a uma melhor qualidade de vida (Tabela 4). No entanto, a pontuação do PSQI foi maior naqueles que não exercem trabalho remunerado, sugerindo pior qualidade do sono nesse subgrupo. As médias das pontuações dos domínios do WHOQOL-BREF e do PSQI não diferiram de forma estatisticamente significativa entre cuidadores com filhos com menos ou mais de um ano de vida.
DiscussãoNo presente estudo, a maioria dos cuidadores de crianças com menos de dois anos de vida da amostra revelou apresentar prejuízos da qualidade do sono, o que por sua vez teve correlação com os domínios de qualidade de vida. Ainda assim, a maioria dos participantes mostrou-se satisfeita com a própria qualidade de vida.
O sono é fundamental para manter o equilíbrio das funções humanas, sendo responsável pela restauração física e psicológica. Os resultados desta pesquisa corroboram com este conceito ao mostrar que todos os domínios avaliados para qualidade de vida – social, psicológico, físico e ambiental – tiveram impactos negativos com a baixa qualidade do sono. Fatores fisiológicos com relação ao cuidado da criança, como o aleitamento materno, estiveram entre os motivos de baixa qualidade do sono, sugerindo que o cuidado com uma criança menor de dois anos, ainda que saudável, pode trazer impacto para as mães. Além disso, é importante considerar que o nascimento de uma criança traz modificações fisiológicas relacionadas à diurese, menstruação e níveis de hemoglobina, que parecem impactar o sono materno pelo menos nos primeiros doze meses de vida do bebê.
13Ainda são escassos os estudos que avaliam a qualidade de sono em pais de crianças saudáveis. Uma revisão integrativa da literatura revelou que o sono das mulheres no período pós-parto é mais fragmentado, curto e menos reparador.
3 A grande maioria dos participantes da pesquisa apresentava uma pontuação alterada no PSQI, demonstrando qualidade do sono prejudicada, o que não se alterou de forma significativa na medida em que a criança se torna mais velha. Isso é especialmente relevante porque há pesquisas que mostram que o sono de má qualidade está associado a sonolência e comprometimento diurno, repercutindo também em prejuízos à saúde, como maior risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares, hipertensão arterial sistêmica, estresse crônico e imunodepressão.
14 Ainda, uma revisão sistemática e metanálise sobre o assunto mostrou que o nascimento de uma criança afeta o tempo total de sono e também a eficiência do sono dos pais, especialmente nas primeiras 16 semanas de vida.
13 Podemos supor, portanto, que o prejuízo prolongado na qualidade do sono de pais de crianças pequenas pode levar a repercussões globais e duradouras em sua saúde.
Segundo um estudo prévio que realizou uma modelagem linear funcional para caracterizar os padrões de sono-vigília, as mães que amamentavam são madrugadoras e apresentam atividade diurna reduzida.
15 Por outro lado, em outra pesquisa, o aleitamento materno, em si, não afetou negativamente a qualidade do sono materno, contudo, a duração do sono noturno do lactente foi significativa na predição da curta duração do sono materno.
16 Neste estudo, a qualidade do sono foi avaliada pelo PSQI, que não traz perguntas específicas sobre prejuízo do sono com amamentação ou cuidados com uma criança, mas esses fatores foram frequentemente apontados pelas mães como associados à necessidade de despertar frequentemente.
As pesquisas sobre o sono dos pais no período pós-parto têm se concentrado, principalmente, em mães de crianças em alguma situação específica, como prematuridade ou doença. Nesse sentido, a pesquisa de Edéll-Gustafsson
et al.,
17 revelou que mães de recém-nascidos prematuros experimentaram mais estresse do que as mães de bebês saudáveis, o que influenciou negativamente em seu sono. Já o estudo de Marthinsen
et al.,
5 traz que o sono de mães de recém-nascidos prematuros é referido como ruim, principalmente, na fase precoce após o parto. Tempo total de sono inferior a sete horas, sono fragmentado e despertares noturnos frequentes foram observados por tal pesquisa na população estudada.
5Na presente pesquisa, foi constatado que o exercício de atividade laborativa associou-se a pontuações melhores em três dos quatro domínios do WHOQOL-BREEF, e com uma melhor qualidade do sono pelo PSQI, de forma estatisticamente significativa. De forma semelhante, um estudo prévio mostrou que algumas mães são mais suscetíveis do que outras a apresentarem sono ruim no período do puerpério: mães de prematuros com sintomas depressivos maiores ou com menor número de atividades diurnas relataram sono menos preservador do que mães de prematuros com sintomas depressivos menores ou com maior número de atividades diurnas.
18 Isso pode sugerir que estimular a realização de atividades não relacionadas diretamente com o cuidado da criança, como o trabalho remunerado, pode ter efeitos positivos nessa população.
No estudo atual, não houve diferença estatisticamente significativa nas pontuações para qualidade do sono e qualidade de vida entre pais de crianças no primeiro e segundo ano de vida. De forma semelhante, uma pesquisa mostrou que aproximadamente 26% dos pais estão descontentes com o sono de seus filhos no primeiro ano de vida, número que se manteve semelhante no segundo ano de vida.
19 O descontentamento dos pais com o sono dos seus filhos ainda no primeiro ano de vida teve correlação futura com problemas de sono detectados por um questionário validado; no entanto, os pesquisadores não avaliaram o impacto desses problemas no sono dos pais.
19Há ainda estudos que mostram que ansiedade, depressão, estresse e menor renda estão relacionados à má qualidade de sono em mães cujos bebês prematuros foram admitidos em Unidades de Terapia Intensiva Neonatal.
20 Há pesquisas mostrando, também, uma pior qualidade de sono em pais de crianças com adoecimentos agudos ou crônicos, hospitalizadas ou não. Nessas pesquisas, conclui-se que a dedicação dos pais aos cuidados com as crianças leva a um sono com menor duração,
2 pior qualidade
8,21 e sintomas de fadiga diurna.
3 No entanto, diante de uma criança doente ou hospitalizada, há diversos fatores adicionais influenciando na qualidade de sono de seus pais, como estresse parental;
22 questões familiares e do ambiente de cuidados de saúde;
23 preocupação com o estado crítico da criança, estar ou não à beira do leito, pensamentos e sentimentos difíceis;
20 e mesmo quadros de ansiedade patológica e depressão pós-parto.
8 Entretanto, o presente estudo sugere que mesmo pais de crianças nascidas à termo e/ou saudáveis podem apresentar impactos negativos no sono e na qualidade de vida.
Os distúrbios do sono provocam diversos impactos adversos no cotidiano por diminuir o funcionamento diário das pessoas, aumentar a predisposição ao desenvolvimento de distúrbios psiquiátricos, déficits cognitivos, surgimento e agravamento de problemas de saúde, riscos de acidentes de tráfego, absenteísmo no trabalho, piora dos relacionamentos, com diferentes desdobramentos a curto, médio e longo prazo.
24 Apesar disso, nesta pesquisa, a maioria dos participantes autoavaliaram a qualidade de vida de forma positiva. É preciso lembrar que a qualidade de vida é multidimensional, e influenciada por inúmeros fatores além do sono. Não podemos descartar, por exemplo, que os respondedores da pesquisa estejam muito felizes com o nascimento de um filho, o que melhoraria sua percepção da qualidade de vida. Outra questão relevante é que grande parte dos respondedores exerce trabalho remunerado, e que a renda e a escolaridade de nossa amostra foram elevadas, possibilitando, portanto, de maiores recursos como a contratação de cuidador auxiliar, o que poderia influenciar na autopercepção positiva da qualidade de vida.
Faltam ainda pesquisas que buscaram intervir na qualidade do sono dos pais de crianças pequenas, e as estratégias para esse fim são variadas, em geral envolvendo a melhora do sono dos bebês. Um estudo com uma intervenção cognitivo-comportamental, de braço único, mostrou benefícios no sono da criança e no estresse parental, mas teve um número amostral baixo e não utilizou grupo controle.
25 Já uma revisão sistemática recente mostrou benefício de intervenções variadas para o sono de crianças pequenas, como redução do tempo de tela, ir para cama mais cedo e adotar uma rotina calma antes do horário de dormir, destacando a necessidade de individualização dos casos e de orientações direcionadas pelos profissionais da saúde.
26Algumas limitações desta pesquisa merecem ser destacadas. Primeiro, por ser um estudo transversal, a avaliação foi realizada de forma pontual, não mostrando a evolução progressiva – positiva ou negativa – da qualidade do sono, associando a manutenção ou modificação de aspectos envolvidos; segundo, a maioria dos participantes era da região Sudeste, e um percentual elevado tinha ensino superior completo, o que pode prejudicar a generalização dos resultados. Não foram coletadas informações sobre a necessidade e a frequência de aleitamento materno durante a noite, o que pode impactar o sono dos respondedores. Por se tratar de uma pesquisa com coleta de dados on-line, os respondedores possuíam acesso à internet, o que traz certa limitação dos resultados da pesquisa quanto ao alcance sociodemográfico, ao não abordar pessoas sem acesso às redes. É preciso considerar a possibilidade de viés de resposta, ou seja, os participantes que concordaram em responder à pesquisa possivelmente se interessaram por ela por terem queixas relacionadas à qualidade do sono ou qualidade de vida. Por fim, não foram coletadas informações sobre diagnósticos prévios relacionados à saúde mental dos participantes.
Por outro lado, cabe destacar que se trata de uma pesquisa que utilizou instrumentos validados e com tamanho amostral significativo, com uma amostra representativa de uma população de mães do mundo real. Além disso, embora tenham sido citadas diversas pesquisas que avaliaram a qualidade do sono e qualidade de vida em pais e mães de crianças prematuras ou portadoras de doenças crônicas, a literatura ainda carece de estudos que avaliem tais desfechos na população de pais e mães em geral. Portanto, essa pesquisa traz o ineditismo do resultado de uma qualidade do sono prejudicada mesmo para cuidadores de crianças saudáveis e nascidas a termo.
A baixa qualidade do sono pode trazer consequências negativas para a saúde, trabalho e relações sociais dos pais de crianças pequenas, e isso é algo que precisa ser mais bem estudado. Ainda faltam pesquisas que avaliem a saúde física, mental e os sintomas de fadiga nessa população, bem como os prejuízos para a vida cotidiana que podem surgir com a privação de sono. Tais resultados podem, inclusive, influenciar políticas públicas relacionadas aos direitos de licença maternidade e paternidade e outros direitos trabalhistas, tão divergentes entre diferentes países. Além disso, é preciso que profissionais de saúde fiquem especialmente atentos à saúde física e mental dos cuidadores de crianças pequenas.
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Contribuição dos autoresVitorino LS, Costa LH, Camargo MN, Oliveira MED, Silva RGO: coleta de dados, redação do manuscrito. Alvim VF: coordenação do projeto, análise de dados, redação do manuscrito. Grunewald STF: concepção e redação do projeto de pesquisa, análise de dados, redação do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.
Recebido em 16 de Fevereiro de 2024
Versão final apresentada em 15 de Agosto de 2024
Aprovado em 28 de Agosto de 2024
Editora Associada: Karla Bomfim