Estudos emergentes sobre mecanismos fisiopatológicos envolvidos no desenvolvimento e na persistência da asma revelam complexas interações gene-ambiente, onde os genes identificados interagem com múltiplos fatores ambientais.1,2 Na prática clínica, importantes esforços são despendidos para o controle medicamentoso e a identificação de fatores físico-químicos e biológicos desencadeantes ou agravantes da asma. No entanto, no seguimento ambulatorial dos pacientes, ainda parece inicial a práxis sobre como reconhecer e agir sobre fatores psicossociais fortemente implicados no desenvolvimento da asma e de outras doenças na perspectiva biopsicossocial.3,4Alguns desses fatores psicossociais são estudados com a denominação de ACE (do inglês, Adverse Childhood Experiences), que incluem experiências adversas no início da vida, a partir da gestação até os 18 anos de idade. São exemplos de ACE: a violência por parceiro íntimo na gestação; a separação dos pais ou cuidadores; as doenças psiquiátricas e abuso de álcool e outras drogas pelos pais ou cuidadores; as violências psicológica, física e sexual, entre outras situações.5,6
Os estudos sobre ACE e suas repercussões biopsicossociais na vida adulta foram iniciados por Fellitie et al.7,8 na década de 1980 ─ o Adverse Childhood Experiences Study (ACE Study).7,8 As descobertas da “década do cérebro” e do projeto genoma, ambas nos anos 1990, impulsionaram ainda mais as pesquisas sobre a interação gene-ambiente, realçando a atuação da epigenética no surgimento de doenças ao longo da vida.
A epigenética caracteriza-se por mudanças na expressão gênica que ocorrem sem alterações na estrutura do DNA. No ano 2007, Ptashne9 definiu três critérios para caracterizar a epigenética uma alteração na atividade de um gene: 1) que não envolve uma mutação; 2) e que é iniciada por um sinal; e 3) que pode resultar em risco alterado de doença na ausência do sinal que iniciou sua alteração. Classicamente, foram identificados 4 mecanismos epigenéticos: 1) metilação do ácido desoxiribonucleico (DNAm); 2) modificação de histonas; 3) remodelação da cromatina; e 4) pequenos ácidos ribonucleicos não codificantes ou micro-RNA (miRNAs).1,9
A informação epigenética é parcialmente estável no decurso da mitose e estabelece uma memória (ou assinatura) de exposições passadas, particularmente em transições de desenvolvimento. Os períodos de desenvolvimento mais vulneráveis às ações do ambiente sobre os genes são o período intrauterino e a fase pré-puberdade.2,10 A herança meiótica epigenética em células germinativas está sendo comprovada laboratorialmente no Caenorhabditis elegans, o primeiro animal a ter seu genoma totalmente sequenciado e que funciona como modelo de estudo genético de muitas doenças humanas. Esse reconhecimento de que a informação epigenética pode ser transmitida através das gerações (ou seja, através da meiose) motiva estudos sobre transmissão de doenças de forma intergeracional, transgeracional e multigeracional.2,11
A herança é intergeracional quando as exposições ambientais maternas que têm efeitos diretos sobre o feto e sobre suas células germinativas levam à alteração do fenótipo do filho e, possivelmente, do neto. A herança transgeracional corresponde às exposições ambientais do pai ou da mãe antes da concepção, com efeito na geração seguinte e que se revelam nos descendentes afetados mesmo na ausência de exposição ambiental direta. A herança é multigeracional quando envolve a transmissão de informação epigenética ao longo das gerações na ausência de qualquer exposição ambiental direta ou de manipulações genéticas.11
Também no ano 2007, o pediatra Peter Gluckman et al.12 propuseram a Teoria da Origem Desenvolvimentista da Saúde e da Doença (DOHaD) que reforçou a importância de se considerar a plasticidade biológica do ser humano diante da interação com os eventos ambientais, especialmente os que ocorrem início da vida.12 Nesse cenário, na última década são publicados estudos sobre a resposta ao estresse tóxico no contexto das ACE.O estresse tóxico é uma resposta imunoneuroendócrina prolongada e intensa do corpo a eventos estressantes, quando há maior produção de glicocorticóides e predisposição a eventos epigenéticos.6 Quanto à asma, demonstrou-se em animais que o stress materno durante a gravidez pode aumentar a inflamação das vias aéreas e a suscetibilidade a alergias na descendência.1,2
Diante das evidências apresentadas, é possível inferir que os fatores psicossociais influenciam na gravidade da asma, na resposta ao tratamento preconizado e, principalmente, na qualidade de vida dos pacientes e de suas famílias. Identificar e agir sobre situações de estresse tóxico bem como considerar a intergeracionalidade das ACE pode ter um impacto significativo no manejo de crianças e adolescentes asmáticos.
No entanto, são desafiadoras a identificação e a ação sobre possíveis contextos psicossociais tóxicos durante os atendimentos. A comunicação do profissional com o paciente e sua família para triar situações de estresse tóxico é o primeiro desafio a ser considerado.13 Usualmente, a abordagem psicossocial do paciente em situação de violência não faz parte da grade curricular dos cursos de graduação na área de saúde. A aplicação de instrumentos validados para auxiliar na detecção de contextos violentos também não parece rotineira durante as consultas.14,15
O segundo desafio é a condução de casos de ACE passíveis de suporte em rede intersetorial de proteção. Este modus operandi precisa ser mais divulgado e se estender para além do setor público de saúde, a fim de fazer parte da rotina de atendimentos também no setor privado. Quanto mais precoces as nossas intervenções sobre as ACE, maiores as chances de redução de efeitos deletérios para a saúde biopsicossocial de todos os envolvidos.
A prevalência de asma é variável em todo o mundo, mas há incrementos desde a segunda metade do século passado, trazendo maiores impactos em países em desenvolvimento.2,3 Reconhecer e agir sobre fatores psicossociais que afligem nossos pacientes pode ser um caminho de reparação não só para o manejo e a prevalência da asma, mas para inúmeras condições clínicas que ameaçam a saúde integral e parecem ter potencial de se perpetuarem para as futuras gerações.
Contribuição do autor
A autora realizou a concepção do artigo e declara não haver conflito de interesse.
Referências
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Recebido em 25 de Agosto de 2024
Versão final apresentada em 26 de Agosto de 2024
Aprovado em 27 de Agosto de 2024
À convite do Editor Chefe: Lygia Vanderlei