Os defeitos do tubo neural (DTN) são malformações congênitas que resultam da falha do fechamento do tubo neural entre a 5º e a 6º semana de gestação. O local anatômico onde a falha ocorre define o tipo do defeito.1 A espinha bífida (EB) é o resultado da falha do fechamento do tubo neural em sua porção caudal, sendo classificada como aberta, em mais de 90% dos casos, quando as estruturas nervosas ficam expostas por uma falha em conjunto com a pele, e fechada, que corresponde à menor parte dos casos, onde as estruturas nervosas são cobertas pela pele.2
A espinha bífida aberta apresenta diferentes subtipos definidos pelo conteúdo dentro do defeito. A meningocele contém apenas saco dural, enquanto a mielomeningocele também contém elementos neurais que estão presos ao saco herniário. O termo mieloesquise ou raquisquise é usado quando o placódio neural está exposto sem a presença de um saco herniário, e se apresenta como uma lesão plana.3
Anualmente, em torno de 150.000 crianças nascem com EB no mundo.4 No Brasil, a prevalência estimada é de 14 casos a cada 10.000 nascimentos e a soma de todos os tipos de DTN chega a 24 casos a cada 10.000 nascimentos.5
A maioria dos casos de DTN são considerados de origem multifatorial e são influenciados por uma combinação de fatores geográficos, étnicos, genéticos e alimentares.6 Entre os nutrientes envolvidos na etiopatogenia dessa doença, o mais estabelecido é o folato (também conhecido como ácido fólico ou vitamina B9). O folato não é produzido pelo corpo humano e deve ser obtido através da ingesta de alimentos ricos nessa vitamina ou por suplementação de sua forma sintética.7 Alguns países têm introduzido o ácido fólico em alimentos essenciais, no Brasil essa fortificação é realizada na farinha de trigo, como uma forma de tentar minimizar a ocorrência de casos de DTN.8
O diagnóstico da EB é feito no pré-natal em mais de 90% dos casos.9 Atualmente, a ultrassonografia (USG) é considerada padrão ouro para esse diagnóstico. As características ultrassonográficas da EB podem ser detectadas no segundo trimestre e incluem um formato anormal do crânio com o achatamento dos ossos temporais (“sinal do limão”), aparência anormal dos ventrículos cerebrais em formato de lágrima (colpocefalia), ventriculomegalia, alteração da fossa posterior com herniação cerebelar (“sinal da banana”) e não visualização da cisterna magna e alteração na posição dos pés e membros inferiores (MMII) com diminuição de sua movimentação. Além desses sinais indiretos, também pode-se observar o defeito direto na coluna com a presença de imagem cística ou saculação e o fechamento anormal ou incompleto dos arcos vertebrais posteriores.10 É importante ressaltar que novos marcadores para EB foram introduzidos nas últimas décadas permitindo a suspeita e o diagnóstico ainda no primeiro trimestre, como a transluscência intracraniana.11
A mielomeningocele é uma malformação congênita complexa, sendo a anomalia mais frequente do sistema nervoso central (SNC) compatível com a vida. Apresenta uma taxa de óbito em torno de 10%12 e cursa com considerável morbimortalidade a curto e longo prazo, incluindo paralisia, diminuição de força e movimentação de membros inferiores e disfunções intestinais e urinárias. Ao nascimento apresentam herniação cerebelar (Síndrome de Arnold Chiari tipo II) com obliteração do forame de magno, anormalidades do tronco cerebral e frequentemente cursam com hidrocefalia e necessidade de derivação ventrículo peritoneal. É importante destacar que revisões cirúrgicas da derivação ventrículo peritoneal são comuns ao longo da vida devido a infecção ou obstrução.13
O tratamento clássico da espinha bífida é realizado após o nascimento, mas desde a publicação do “Management of Myelomeningocele Study” (MOMS)14 em 2011, a correção intrauterina tem sido uma opção para esses pacientes. O estudo demonstrou melhora na função motora, menor herniação do tronco cerebral e cerebelo e diminuição da necessidade de procedimentos cirúrgicos para hidrocefalia, principalmente a necessidade de derivaçãoventrículo peritoneal, quando comparado a correção intrauterina com a pós-natal, com melhora na qualidade e expectativa de vida para esses pacientes.14
Apesar dos benefícios claros demonstrados pelo estudo, o que levou a interrupção do mesmo antes de atingir o quantitativo inicial de pacientes estimados, algumas limitações e riscos maternos e fetais também foram descritos. Entre as principais complicações temos o aumento do risco de rotura prematura de membranas ovulares (RPMO) e parto prematuro espontâneo, com 79% ocorrido antes da 37ª semana e 36% antes da 35ª semana,14 assim como limitações maternas ao longo da gestação e a necessidade de parto cirúrgico nesta e em gestações futuras.14
Desde a publicação do MOMS trial, o número de centros que oferecem a cirurgia fetal para mielomeningocele tem crescido significativamente, principalmente nos Estados Unidos, aumentando assim o acesso regional ao procedimento, mas potencialmente diluindo a experiência de centros individuais. No Brasil, a cirurgia fetal, até 2011, era realizada apenas em São Paulo, pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e posteriormente no Hospital e Maternidade Santa Joana pela mesma equipe.
Após o MOMS trial houve o surgimento de outros centros oferecendo esse procedimento. Inicialmente mais dois centros em São Paulo, na Unidade Fetal do Hospital do Coração (HCor) e no Hospital Israelita Albert Einstein (primeira correção de mielomeningocele por fetoscopia no Brasil em 2013). Posteriormente, a correção de mielomeningocele intrauterina pode ser realizada em diferentes estados e centros médicos no Brasil, possibilitando uma maior disponibilidade do procedimento às pacientes. Entre outros centros brasileiros que realizam a cirurgia intrauterina de forma regular, temos o Hospital Moinhos de Vento – Rio Grande do Sul, Maternidade Escola da UFRJ - Rio de Janeiro, Maternidade Escola Assis-Chateaubriand (MAEC) – Ceará e Hospital Vila da Serra – Minas Gerais.
O Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP) é hospital de referência para malformações fetais e neurocirúrgicas no estado e região nordeste do Brasil. Desde 2013 o serviço de medicina fetal e neurocirurgia do IMIP realiza e oferece às pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) a correção de mielomeningocele intrauterina, sendo o quarto centro no Brasil a realizar esse procedimento. A cirurgia realizada em nosso serviço é a “aberta”, utilizando a técnica de minihisterotomia15 e adaptada para nossa instituição.16 Destaca-se que as complicações cirúrgicas no IMIP apresentaram uma frequência semelhante a literatura,14 como a RPMO que foi de aproximadamente 48%.16
O grupo do IMIP já realizou mais de 80 procedimentos ao longo desses anos, sendo a equipe composta por especialistas em medicina fetal, neurocirurgia e anestesia. Além de médicos especialistas, contamos com o apoio de médicos residentes, estudantes de graduação, profissionais de enfermagem, bloco cirúrgico e unidade de terapia intensiva (UTI). Essa equipe multidisciplinar é de extrema importância para o suporte e acompanhamento de cada paciente.
Apesar dos avanços ocorridos nos últimos anos em relação a disponibilidade de centros especializados em medicina fetal no Brasil, a cirurgia intrauterina ainda carece de centros em todas as regiões do país. Na atualidade as pacientes ainda necessitam peregrinar pelo Brasil na tentativa de encontrar centros especializados, além da pouca divulgação da possibilidade dessa correção ainda intraútero, o que acaba culminando com a perda da oportunidade da sua realização, já que a mesma deve ser realizada no 2º trimestre gestacional.
Referências
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3. Yilmaz A, Müslüman AM, Dalgic N, Cavuşoğlu H, Ayhan Kanat A, Colak I, et al. Shunt insertion in newborns with myeloschisis/ myelomeningoceles and hydrocephalus. J Clin Neurosci. 2010; 17 (12): 1493-6.
4. Gotha L, Pruthi V, Abbasi N, Kulkarni AV, Church P, Drake JM, et al. Fetal spina bífida: What we tell the parentes. Prenat Diagn. 2020; 40 (12): 1499-1507.
5. Lopes-Camelo JS, Cartilla EE, Oriolli IM. Folic acid flour fortification: Impact on the frequencies of 52 congenital anomaly types in three South American countries. Am. J. Med Genet. 2010; 152 (10): 2444-58.
6. Copp AJ, Adzick NS, Chitty LS, Fletcher JM, Holmbeck GN, Shaw GM. Spina bifida. Nat Rev Dis Primers. 2015; 1: 15007.
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8. Canfield MA, Collins JS, Botto LD, Willians LJ, Mai CT, Kirby RS, et al. Changes in the birth prevalence of selected birth defests after grain fortification with folic acid in the United States: findings from a multistate population-based study. Birth Defects Res A Clin Mol Teratol. 2005; 73 (10): 679-89.
9. Bodin CR, Rasmussen MM, Tabor A, Westbom L, Tiblad E, Ekelund CK, et al. Ultrasound in prenatal diagnostics and its impact on the epidemiology of spina bifida in a national cohort from Denmark with a comparison to Sweden. Biomed Res Int. 2018; 2018: 9203985.
10. Sepulveda W, Corral E, Ayala C, Be C, Gutierrez J, Vasquez P. Chromosomal abnormalities in fetuses with open neural tube defects: prenatal identification withbultrasound. Ultrasound Obstet Gynecol. 2004; 23 (4): 352-6.
11. Meller C, Aiello H, Otano L. Sonographic detection of open spina bifida in the first trimester: review of the literature. Childs Nerv Syst. 2017; 33 (07): 1101-6.
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13. Caldarelli M, Di Rocco C, La Marca F. Shunt complications in the first postoperative year in child with meningomyelocele. Childs Nerv Syst. 1996; 12: 748-54.
14. Adzick NS, Thom EA, Spong CY, et al. A randomized trial of prenatal versus postnatal repair of myelomeningocele. N Engl J Med. 2011; 364 (11): 993-1004.
15. Botelho RD, Imada V, Costa KJR, Watanabe LC, Rossi Jr. R, Salles AAF, et al. Fetal Myelomeningocele Repair through a Mini-Hysterotomy. Fetal Diagn Ther. 2017; 42 (1): 28-34.
16. Callou RT, Faquini SL, Santos-Neto OG, Faquini I, Furtado G, Furtado MF, et al. Maternal and perinatal outcomes after prenatal or postnatal surgical repair of myelomeningocele. Cuad Educ Desarrollo. 2024; 16 (5): 1-24.
Contribuição dos autores
Todos os autores contribuíram igualmente na concepção do artigo e declaram não haver conflito de interesse.
Recebido em 5 de Setembro de 2024
Versão final apresentada em 6 de Setembro de 2024
Aprovado em 9 de Setembro de 2024
À convite da Editora Chefe: Lygia Vanderlei